Col de Sarenne
Subir uma montanha pedalando, atravessar para o outro lado e se deparar com um cenário completamente diferente é uma sensação muito doida. Foi o que mais me chamou a atenção quando subi o Alpe d'Huez
Viajar para pedalar na França, como já contei aqui, tinha dois intuitos. Um era satisfazer o ciclista, outro o jornalista, que queria conhecer de perto os locais que vemos nas transmissões do Tour de France. O Alpe d’Huez não poderia ficar fora do roteiro, e foi o primeiro grande pico do Tour a ser a ser encarado. O texto a respeito está aqui.
O Alpe d’Huez também serviu para me apresentar um outro lado dos Alpes.
Acho a história do “Nutella x raiz” é uma grande bobagem, usado para debochar e rotular um tanto de coisa e desvirtuando discussões que poderiam ser bem melhores. Mas essa droga fica na cabeça, não adianta, e me veio à mente na hora de comparar a parte da frente da montanha ao que você se depara quando passa pelo topo e vai para a parte de trás. É quase um outro mundo.
O Alpe d’Huez é tudo o que descrevi neste outro texto, e creio que a leitura dele deixa claro o quão especial é o lugar e que não quero falar mal, debochar, menosprezar. Até porque “Nutella” é bom, não é? Vai falar que vocês não gostam… Só que, se você for até Huez e descer por onde subiu, o rolê é um. Se você passar para o lado de trás, a experiência é outra, completamente diferente. Por isso falo em “dois lados dos Alpes”.
Quando estamos a 500, 1000 metros de altitude, diante de uma montanha que vai até 2000, devemos esperar que o outro lado seja diferente. É inevitável. Seja pelo clima, seja pela natureza, seja pela própria influência do homem. É o tipo de relevo que, no passado, separava povos, culturas. Hoje em dia, os meios de transporte que temos, essas barreiras deixaram de ser intransponíveis, mas ainda há contrastes. Neste caso, o contraste é com o… nada.
Para chegar a Huez saindo de Grenoble foram cerca de três horas pedalando por estradas boas, sinalizadas, passando por áreas urbanas de tempos em tempos. Tudo sempre “civilizado". Há movimento constante. As pessoas passam de carro, moto, bicicleta. Há gente em cada uma dessas cidades. Ao passar do topo tem… nada!
A paisagem do Sarenne é uma que te faz parar e contemplar, e que te faz sentir-se pequeno diante daquela imensidão. Você consegue ver a estrada indo longe, sumindo pouco a pouco, o que, na minha cabeça, é uma clássica imagem de Tour de France — e não é única do Sarenne, mas é que foi lá que me deparei com ela pela primeira vez. Sabem quando vem aquela descida em que o helicóptero vai se afastando e mostrando o quanto os ciclistas são pequenos na comparação ao local em que estão? E que dão até um calafrio de ver a velocidade que eles pegam serpenteando pelas curvas com abismos de centenas de metros caso eles saiam da estrada?
O Sarenne ainda tem um fator a mais, que é a estrada mal cuidada. Foi o pior asfalto que vimos em 1400 km e 10 dias nos Alpes, tranquilamente. Em alguns pontos da primeira parte da descida, estava mais para uma estrada de terra do que uma via pavimentada, o que até dá uma assustada. Não dá para abusar. Reconheço que sou medroso em descidas, e aquela era a primeira verdadeira descida alpina que eu estava encarando na vida, mas acho que o alemão Tony Martin pensou parecido quando foi lá pela primeira vez, em 2013, na preparação para o Tour. “A estrada é antiga e estreita, e não tem guard-rails. Um erro pode te fazer despencar 30 metros de uma vez. É uma responsabilidade nos colocar para passar lá”, escreveu Martin, na época, em seu site pessoal.
E aí vem a subida. 3,15 km até o topo, que fica a 1999 metros de altitude. São duas grandes retas com uma espécie de ’S’ na metade, que meio que te permite ter uma visão 360º enquanto sobe, sendo que você consegue ver para onde a estrada está indo quase o tempo todo. Uns gostam, outros não. Há quem ache que isso só traz mais sofrimento e que é melhor encarar aquelas em que você só mira a curva seguinte e depois pensa no resto. Eu estou no time dos que gostam, por ter a referência do quanto falta na subida, e serve até como motivação conseguir ver o colosso que é a montanha e pensar que estou ali, de bicicleta, capaz de superá-la.
A vista era de uma grande encosta verde, como falei. A inclinação não é brutal. Há partes rochosas da montanha, mas não são paredões. É um enorme pasto, que sobe por metros e metros até um topo arredondado, sem árvores altas, apenas com a vegetação rasteira para os rebanhos desfrutarem quando o frio passa.
Tem mais uma outra coisa a ser contemplada nesta parte mais alta do Sarenne: o silêncio. Neste momento, nosso grupo de 4 ciclistas estava separado na estrada, com talvez um minuto de diferença de um para o outro. As únicas coisas que se ouvia eram o barulho da corrente e da própria respiração. Mais nada por quase 14 minutos. Muito doido.
(Um terceiro barulho: dos pensamentos que passam pela cabeça enquanto você pedala, uma infinidade, e um deles foi escrever textos sobre a viagem e de repente publicar em uma newsletter. É, foi lá que a ideia disso tudo aqui nasceu.)
Tudo isso é um contraste total com o que vi nas primeiras três horas de pedal, na parte da frente do vale.
Chegamos ao topo um de cada vez, demorando um pouco para recuperar o ar naquela altitude, não estamos habituados a tanto. Onde a estrada dobra o vale, apenas uma casinha pequena, que estava fechada. Trocamos ideia com um casal de ingleses que estava lá para passar o fim de semana pedalando, todos nós com uma cara de admirados. Um lugar "raiz". Inexplorado.
Tive, ali, uma sensação de estar em um local completamente remoto. Ao mesmo tempo, cheguei até ali de bicicleta, girando os pedais com as minhas próprias forças. Era só o segundo dia, porém, a viagem já havia valido a pena.




Se você chegou até aqui, imagino que tenha gostado e que queira assinar esta newsletter para receber novos textos nas próximas semanas. Custa nada. É algo que faço para mim, mas também como uma forma de promover a cultura do ciclismo e mostrar diferentes faces de algo que é ao mesmo tempo trabalho e lazer para mim. Quanto mais gente alcançarmos, melhor. Poderiam ser vídeos mais extensos estilo YouTube, vídeos curtos destes de redes sociais — e até fiz alguns durante a viagem e coloquei no Instagram —, as tendências do momento, porém me sinto melhor em um espaço como este. E se achar que é um projeto que merece continuar a longo prazo, e puder fazê-lo, considere também uma assinatura. Ainda há muitas estradas para serem percorridas!
Parabéns Renan !
Estou adorando seus textos.
Acompanhei seus pedais por lá.
Fomos pedalar por lá (éramos um grupo de 12 pessoas) uma semana depois que você passou por lá.
Passamos pelo Col de Sarenne depois de ir ao Villard du Notre Dame e subir Alpe d’Huez. Já estávamos bem cansados e com uns 2400m acumulados já.
Sarenne é realmente tudo que você descreveu. Muito diferente de tudo. Ainda tem o cascalho na descida que coloca um pouco mais de emoção.
Cheguei a registrar 40 graus na subida de Alpe d’Huez. Lá em cima apenas 4 de nos animou descer por Sarenne e o resto do grupo voltou por onde subimos.
Pegamos uma chuva muito forte e em 5 minutos a temperatura chegou a 14 graus. Não foi fácil. Nos abrigamos em um banheiro público de madeira no final da subida, colocamos os casacos e resolvemos seguir para não esfriar mais.
Uma das descidas mais difíceis que eu fiz, mas uma das histórias mais legais também. Chegamos todos rindo feito crianças.
Incrível !
É isso mesmo. Sensação fantástica ao atravessar as montanhas alpinas, os Pirineos e as Dolomitas. Cenários fantásticos. E haja pernas para superá-las.